América Latina: Colaboração com instituições multilaterais é vital para o desenvolvimento das finanças islâmicas
- Juliana Pires
- 25 de jun.
- 4 min de leitura
Atualizado: 1 de jul.
Artigo escrito por Marc Daher, CEO do Centro Halal da América Latina

Em meados de 2025, as finanças islâmicas continuam praticamente inexistentes no Brasil e na região latino-americana em geral. Apesar da expansão global consistente dos sistemas financeiros compatíveis com a Shariah (lei islâmica), a região ainda não conta com nenhum banco islâmico, operadora de takaful (seguro islâmico) ou fintech que opere de acordo com os princípios islâmicos. O Suriname é a única exceção na América do Sul, onde uma instituição adotou práticas bancárias islâmicas com apoio internacional — um caso isolado que evidencia ainda mais a lacuna regional.
Esse vazio institucional é um paradoxo. O Brasil abriga uma das maiores diásporas árabes do mundo — com mais de 12 milhões de brasileiros de ascendência árabe — e uma comunidade muçulmana praticante estimada em 2,5 milhões de pessoas, atendida por centenas de mesquitas. Além disso, o país é líder global nas exportações de alimentos halal (permitidos segundo a Shariah), um setor que gera bilhões de dólares por ano. Apesar dessa sólida base demográfica e comercial, a dimensão financeira da economia islâmica permanece totalmente subdesenvolvida.
UMA DEMANDA OCULTA
Nos últimos anos, o interesse por finanças islâmicas cresceu, especialmente entre os jovens muçulmanos e os convertidos no Brasil. Essa nova geração está mais consciente dos fundamentos éticos das finanças compatíveis com a Shariah e busca ativamente alternativas aos sistemas convencionais baseados em juros. Desde 2023, os debates sobre o desenvolvimento de bancos e fintechs islâmicas no Brasil começaram a ganhar força entre imãs (líderes religiosos), estudiosos religiosos e líderes comunitários, impulsionados por influenciadores no espaço digital muçulmano.
Apesar desses esforços, persiste uma lacuna técnica crítica. Muitos líderes religiosos locais carecem de alfabetização financeira especializada e conhecimento sobre os padrões contemporâneos das finanças islâmicas, como os estabelecidos pela AAOIFI (Organização de Contabilidade e Auditoria para Instituições Financeiras Islâmicas) ou pelo IFSB (Conselho de Serviços Financeiros Islâmicos). Isso tem dificultado a formulação de modelos viáveis capazes de conciliar os princípios da Shariah com a complexa regulamentação financeira brasileira.
Ao mesmo tempo, a natureza ética das finanças islâmicas começou a atrair um público mais amplo. Vários empresários brasileiros e latino-americanos não muçulmanos demonstraram interesse crescente em seus princípios baseados em ativos e na partilha de riscos. No entanto, esse movimento não está isento de resistência. Certos grupos conservadores ou secularistas manifestaram oposição, distorcendo as iniciativas de finanças islâmicas como uma tentativa de “islamização” das instituições nacionais. Tais narrativas, embora isoladas, destacam a necessidade de uma comunicação mais clara sobre os fundamentos inclusivos e éticos das finanças islâmicas.
BARREIRAS ESTRUTURAIS
Apesar da crescente demanda, as finanças islâmicas enfrentam barreiras estruturais significativas no Brasil, especialmente no campo regulatório e tributário.
A legislação bancária brasileira atualmente não oferece uma categoria de licença para bancos islâmicos. O Banco Central não reconhece contratos centrais da Shariah, como Murabahah (venda com lucro declarado), Ijarah (arrendamento ou leasing islâmico), Mudarabah (parceria em que uma parte fornece o capital e a outra a gestão) ou Sukuk (títulos islâmicos comparáveis aos bonds). Além disso, os bancos são proibidos de possuir ou negociar bens físicos — um requisito fundamental para muitas estruturas islâmicas baseadas em ativos — tornando-as inviáveis sob a regulamentação atual.
A tributação representa uma segunda barreira igualmente crítica. O sistema tributário brasileiro, complexo, não foi projetado para acomodar os mecanismos das finanças islâmicas. Em uma compra de imóvel via Murabahah, por exemplo, uma instituição financeira precisa adquirir o imóvel e depois revendê-lo ao comprador com um lucro previamente acordado. Cada transferência pode acionar a cobrança do ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis), enquanto um financiamento convencional incide esse imposto apenas uma vez. Isso resulta em bitributação, tornando a alternativa compatível com a Shariah significativamente mais cara.
Além disso, o IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) incide sobre transações de crédito, seguros e valores mobiliários. Como as estruturas de finanças islâmicas frequentemente exigem transferências intermediárias de ativos, cada etapa pode se tornar um evento tributável, elevando ainda mais os custos.
ESTRATÉGIA E DIPLOMACIA
Sem clareza regulatória e reforma legal, as finanças islâmicas no Brasil permanecerão apenas uma inspiração. Uma audiência pública realizada no Senado Federal em 2021 reconheceu a incompatibilidade entre a legislação vigente e os contratos financeiros islâmicos. Embora tenha sido um marco importante, o debate ainda não produziu resultados concretos. O Brasil ainda carece de um sandbox regulatório (ambiente de testes regulado), diretrizes de supervisão ou um marco reconhecido de governança Shariah — todos essenciais para o desenvolvimento do setor.
É necessária uma estratégia coordenada para promover um ambiente favorável. Isso deve começar com esforços intensificados em educação e conscientização, ampliando a alfabetização financeira sobre finanças islâmicas nas comunidades muçulmanas, universidades, instituições financeiras e entre os formuladores de políticas públicas — enquadrando-as como uma alternativa ética global, e não apenas um modelo religioso. Paralelamente, as instituições muçulmanas e a sociedade civil devem mobilizar-se para defender, de forma construtiva, a neutralidade tributária, a adaptação legal e a inovação regulatória por meio de consultas e engajamento direto com os órgãos governamentais e autoridades monetárias.
O sucesso também dependerá do aproveitamento de conhecimento externo. A colaboração com países que possuem ecossistemas de finanças islâmicas avançados — como Malásia, Emirados Árabes Unidos, Indonésia e Reino Unido — é vital para acelerar a transferência de conhecimento e adaptar as melhores práticas globais ao contexto brasileiro. Isso deve ser complementado pelo engajamento com instituições multilaterais como o Banco Islâmico de Desenvolvimento (IsDB), a AAOIFI e o IFSB, que podem oferecer suporte técnico, serviços de assessoria e orientações padronizadas para garantir que a implementação seja eficaz e compatível.
Por fim, considerando que o forte mercado de exportação halal do Brasil depende de suas relações com países de maioria muçulmana, esses países podem atuar como aliados diplomáticos, incentivando reformas financeiras e marcos de investimento compatíveis com os princípios islâmicos.
Marc Daher é o Diretor Geral do Centro Halal da América Latina, uma posição que ocupa desde 2018, quando fundou a empresa com o objetivo de fornecer serviços de gestão da qualidade, comércio exterior e certificação Halal para produtos alimentícios na região. Com uma carreira marcada por um profundo compromisso com a qualidade e o serviço social, Marc também estabeleceu o Instituto Islâmico Brasileiro em 2017, uma organização sem fins lucrativos dedicada à promoção da educação e cultura islâmica.
Marc também estará presente no ENCOMEX 2025 no painel PROJETO HALAL CISBRA ao lado de Mario Scangarelli, CEO/Diretor do Sistema CISBRA.